Olívia de Quintana Figueiredo Pasqualeto*
Este terceiro texto conclui a série de artigos publicados[1] com a finalidade de divulgar os resultados da pesquisa desenvolvida entre os meses de março, abril e maio de 2020, na Escola Superior da Advocacia de São Paulo (ESA-SP), sobre o futuro do trabalho, que tem como objetivo geral compreender como a intermediação do trabalho por aplicativos é julgada pelos tribunais superiores no Brasil.
Os casos envolvendo aplicativos foram passaram a ser julgados pelos tribunais superiores no final ano de 2018, com destaque para duas temáticas que primeiro foram analisadas: (1) a discussão sobre a (i)licitude dos serviços de transporte por aplicativos, envolvendo os valores da livre iniciativa, livre concorrência, direito ao trabalho, inovação, mobilidade urbana, meio ambiente e direito do consumidor; (2) e a discussão sobre existência ou não de vínculo empregatício entre motoristas e aplicativos.
(1) Quando os aplicativos de transporte iniciaram a sua operação no Brasil, a primeira discussão jurídica travada repousou sobre a (i)legalidade dessa atividade, considerando que, até então, o transporte remunerado individual de passageiros era prestado exclusivamente pelos taxistas.
O primeiro caso a ser apreciado por um tribunal superior corresponde ao Recurso Especial (REsp) nº 1763838, em que a Companhia Municipal de Trânsito e Urbanização de Londrina (CMTU-LD) questionava perante o STJ um acórdão do Tribunal de Justiça do Paraná que proibiu o exercício do poder de polícia municipal em face dos motoristas uberizados por não haver regulamentação específica da atividade. Considerando que a controvérsia versava sobre tema de repercussão geral a ser julgado no STF (Tema 967: proibição do uso de carros particulares para o transporte remunerado individual de pessoas), o STJ determinou a devolução dos autos ao Tribunal de origem até que o STF realizasse o julgamento.
A repercussão geral mencionada tem como leading case o Recurso Extraordinário (RE) nº 1054110/SP, interposto contra acórdão que declarou a inconstitucionalidade de lei municipal que proibiu o transporte individual remunerado de passageiros por motoristas cadastrados em aplicativos como Uber, Cabify e 99. Nesse mesmo sentido, segue o REsp nº 1804711, em que se debate a proibição do uso de carros particulares para o transporte remunerado de passageiros, e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 449 em face de lei municipal que proibia o uso de carros particulares cadastrados ou não em aplicativos, para o transporte remunerado individual de pessoas. Em todos os casos, a discussão se debruçou sobre a livre iniciativa, a livre concorrência (que podem, no caso, proporcionar melhorias na mobilidade urbana, no meio ambiente e favorecer os consumidores) e a liberdade de trabalho (direito ao trabalho dos motoristas).
Em decisão no RE nº 1054110, o STF entendeu que (a) a União possui competência privativa para legislar sobre “diretrizes da política nacional de transportes”, “trânsito e transporte” e “condições para o exercício de profissões” (artigo 22, IX, XI e XVI, CF); (b) o motorista particular, em sua atividade laboral, possui direito fundamental à liberdade do exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (artigo 5º, XIII, CF), submetendo-se apenas à regulação definida em lei federal, “pelo que o art. 3º, VIII, da Lei Federal n.º 12.965/2014 e a Lei Federal n.º 12.587/2012, alterada pela Lei n.º 13.640 de 26 de março de 2018, garantem a operação de serviços remunerados de transporte de passageiros por aplicativos”; (c) os artigos 1º, IV, e 170 da Constituição Federal garantem a liberdade de iniciativa; (d) o constitucionalismo moderno se fundamenta na necessidade de restrição do poder estatal sobre o funcionamento da economia de mercado.
Em julgamento da ADPF nº 449, o STF entendeu que (a) não há regra que prescreva a exclusividade do modelo de táxi no mercado de transporte individual de passageiros; (b) “é contrário ao regime de livre iniciativa e de livre concorrência a criação de reservas de mercado em favor de atores econômicos já estabelecidos, com o propósito de afastar o impacto gerado pela inovação no setor”; (c) “a admissão de uma modalidade de transporte individual submetida a uma menor intensidade de regulação, mas complementar ao serviço de táxi afirma-se como uma estratégia constitucionalmente adequada para acomodação da atividade inovadora no setor”; (d) trata-se de uma opção que “privilegia a livre iniciativa e a livre concorrência; incentiva a inovação; tem impacto positivo sobre a mobilidade urbana e o meio ambiente; protege o consumidor; e é apta a corrigir as ineficiências de um setor submetido historicamente a um monopólio “de fato”.
Dessa forma, em suma, o STF entendeu pela legalidade do transporte remunerado individual de passageiros realizado por intermédio dos aplicativos.
Ainda no contexto de regulação do serviço oferecido pelos aplicativos, embora não diga respeito à proibição ou restrição da circulação, merece destaque o REsp 1789233 e o REsp 1830854.
No REsp 1789233, discute-se a cobrança, pelo Distrito Federal, de preço público equivalente a 1% do valor de cada viagem realizada pelo aplicativo de transportes 99. No caso, o STJ entendeu que, para a cobrança ser lícita (nos termos da Lei n. 5.691/2016), seria necessário reconhecer que a empresa é utilizadora das vias em caráter intensivo, o que não foi reconhecido pelo tribunal local, para quem os motoristas credenciados usam as vias em sua destinação natural, sem restrição de seu uso pelos demais cidadãos (o que se mostra inviável de ser analisado por recurso especial).
O REsp 1830854 também versa sobre abusividade de norma distrital, a qual estabelece que o veículo seja aprovado em inspeção veicular anual para a obtenção de Certificado de Autorização, obrigatório para o exercício da atividade. O STJ referendou o acórdão prolatado pelo tribunal regional, compreendendo que tal exigência corresponde a inovação abusiva, já que trouxe condicionante não prevista no próprio Código de Trânsito Brasileiro, bem como na Lei nº 12.587/2012, que institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana.
(2) Desde que os aplicativos começaram a operar (inclusive no Brasil), nasceu a discussão sobre o tipo de relação jurídica existente entre os motoristas e as plataformas: empregados (e, portanto, marcados pela subordinação, onerosidade, não eventualidade e pessoalidade, requisitos caracterizadores do vínculo empregatício, conforme artigo 3º da CLT) ou autônomos (e, portanto, sem subordinação e distantes dos requisitos presentes no artigo 3º da CLT).
A discussão foi apreciada pelo TST em dois processos – AIRR-11199-47.2017.5.03.0185 (no final do ano de 2018) e RR-1000123-89.2017.5.02.0038 (no início do ano de 2019) – em que se discute a caracterização do vínculo empregatício. Nos dois casos, contudo, o tribunal entende não estarem presentes os requisitos caracterizadores do vínculo empregatício presentes no artigo 3º da CLT (com destaque para a ausência de subordinação), definindo que o motorista não é empregado do aplicativo Uber (naqueles casos específicos).
Diante dessa mesma discussão, em junho de 2019 foi julgado pelo STJ o Conflito de Competência (CC) nº 166095, suscitado, de ofício, pelo Juízo da 15ª Vara do Trabalho de Brasília/DF; e em agosto de 2019 foi julgado o CC 164544 entre a Justiça do Trabalho e a justiça comum. Ao analisa-los, o STJ reconheceu ausência de relação de trabalho e, por consequência, a competência da Justiça Estadual para o julgamento da demanda. Nesse sentido, na decisão do CC 164544, para o STJ:
os fundamentos de fato e de direito da causa não dizem respeito a eventual relação de emprego havida entre as partes, tampouco veiculam a pretensão de recebimento de verbas de natureza trabalhista. A pretensão decorre do contrato firmado com empresa detentora de aplicativo de celular, de cunho eminentemente civil. 3. As ferramentas tecnológicas disponíveis atualmente permitiram criar uma nova modalidade de interação econômica, fazendo surgir a economia compartilhada (sharing economy), em que a prestação de serviços por detentores de veículos particulares é intermediada por aplicativos geridos por empresas de tecnologia. Nesse processo, os motoristas, executores da atividade, atuam como empreendedores individuais, sem vínculo de emprego com a empresa proprietária da plataforma. 4. Compete a Justiça Comum Estadual julgar ação de obrigação de fazer c.c. reparação de danos materiais e morais ajuizada por motorista de aplicativo pretendendo a reativação de sua conta UBER para que possa voltar a usar o aplicativo e realizar seus serviços. 5. Conflito conhecido para declarar competente a Justiça Estadual.
A questão, no entanto, continua a ser polêmica, já que em âmbito regional há decisões que reconhecem o vínculo empregatício entre motorista e aplicativo. Embora tais decisões fujam ao recorte dessa pesquisa, tais decisões foram evidenciadas no contexto da pandemia de Covid-19.
O entendimento de que há vínculo empregatício entre motoristas e aplicativos ou, ao menos, algum tipo de responsabilidade do aplicativo em relação ao motorista ganhou destaque na jurisprudência durante a pandemia: foram encontrados 15 decisões no TST, proferidas a partir de abril de 2020, em sede de correições parcial que questionavam julgados dos tribunais regionais em que se determinava que o aplicativo fornecesse ao motorista instrumentos para prevenir o contágio pelo novo coronavírus (como, por exemplo, álcool em gel e máscaras) ou que arcasse com parte de seus custos com medidas de prevenção. Nesses casos, o Corregedor Geral da Justiça do Trabalho tem convertido o feito em diligência e/ou encaminhado para conciliação.
Por fim, as demais discussões jurídicas travadas nas decisões analisadas foram menos abrangentes e menos frequentes, tendo apenas um resultado (por discussão) na pesquisa jurisprudencial realizada. São elas:
(i) o conflito (negativo) territorial de competência na justiça comum (CC nº 165449) suscitado pelo Juízo de Direito da 37ª Vara Cível de São Paulo/SP em face do Juízo de Direito da 28ª Vara Cível do Rio de Janeiro/RJ, no qual o Juízo carioca declarou de ofício sua incompetência para examinar o feito considerando que o domicílio da ré pertence a outra comarca. Todavia, conforme entendeu o STJ, a questão envolve competência territorial, que é relativa, cuja prorrogação se impõe quando não arguida a incompetência no tempo oportuno;
(ii) a discussão sobre a legalidade do cancelamento unilateral de cadastro do motorista pelo aplicativo no Agravo em REsp (AREsp) nº1593539 em ação de obrigação de fazer com pedido de indenização, fundada no cancelamento unilateral de cadastro de motorista de aplicativo. No caso, o STJ entendeu pela legalidade do cancelamento, visto que o motorista foi notificado diversas vezes da possibilidade da extinção de seu cadastro no aplicativo;
(iii) a discussão sobre uso (indevido) da marca Cabify por outro aplicativo (intitulado “VAH economize tempo e dinheiro”), que é especializado de comparação de preços de corridas. Em julgamento do no AREsp 1433344, o STJ entendeu que tal comparação, sem autorização, evidencia perigo de dano não apenas para a marca Cabify e a sua estratégia de negócios, mas, também, para os consumidores, pela divulgação de valores de corridas, descontos e informações que, por não estarem sendo obtidos por meio de uma relação direta de parceria comercial entre a autora e a requerida, podem realmente padecer de incorreção e desatualização, sendo o uso da marca indevido.
Conforme analisado ao longo da série de textos publicados, nos tribunais superiores brasileiros, predominam duas grandes discussões jurídicas quando da judicialização dos aplicativos: a primeira, pacificada em razão de julgamento, com repercussão geral, do Tema 967 pelo STF, sobre a proibição, limitação ou imposição de condicionantes para o oferecimento do serviço de transporte remunerado de passageiros por meio dos aplicativos. Em julgamento, o STF entendeu pela legalidade de tais serviços, com fundamento no respeito à livre iniciativa, à livre concorrência, à liberdade do exercício de qualquer ofício ou profissão, à inovação, à promoção da mobilidade urbana, à melhoria ambiental e aos direitos do consumidor; a segunda, ainda não totalmente pacificada, sobre a possibilidade de configuração do vínculo empregatício entre motoristas e aplicativos. Neste tocante, o TST entendeu, em dois casos, a inexistência da relação empregatícia e o STJ, em conflito de competência, reconheceu a competência da justiça comum (e não da Justiça do Trabalho) para analisar casos entre motoristas e aplicativos, por se tratar de relação civil e não de trabalho. No entanto, diante da pandemia de Covid-19, uma correlata discussão foi levada ao TST por meio de correição parcial: o questionamento de decisões proferidas pelos TRTs que determinaram a obrigação das empresas de aplicativos fornecerem aos motoristas instrumentos de prevenção ao contágio pelo novo coronavírus ou a indenização dos custos com higiene.
Após a análise sistemática das decisões, acredita-se que os debates sobre caracterização da relação jurídica entre motoristas e aplicativos, bem como sobre a responsabilidade destes em relação àqueles, foram reavivados durante a pandemia e continuarão em pauta na jurisprudência (pelo menos até que o tema seja julgado pelo STF ou até que se aprove algum projeto de lei sobre a questão).
* Doutora e Mestra em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Professora de Direito do Trabalho da Universidade Paulista e da Universidade São Judas Tadeu. Pesquisadora da Escola Superior de Advocacia de São Paulo. Advogada.
[1] A primeira publicação da série pode ser acessada pelo seguinte link: http://ditec.esaoabsp.com/2020/06/08/novas-tecnologias-e-a-intermediacao-do-trabalho-por-aplicativos/ e a segunda publicação está disponível no seguinte link: http://ditec.esaoabsp.com/2020/06/15/retrato-descritivo-da-jurisprudencia-sobre-a-intermediacao-do-trabalho-por-aplicativos-nos-tribunais-superiores-brasileiros/ .
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