Olívia de Quintana Figueiredo Pasqualeto*

Introdução

Este texto é fruto dos resultados da pesquisa desenvolvida entre os meses de março, abril e maio de 2020, na Escola Superior da Advocacia de São Paulo (ESA-SP), sobre o futuro do trabalho e sua interface com as novas tecnologias, e faz parte de uma série de artigos que apresentarão os resultados e temas debatidos ao longo da pesquisa.

Nesta segunda publicação[1], o objetivo é descrever em quais termos se da a judicialização da intermediação do trabalho por aplicativos. Para tanto, realizou-se um mapeamento dos aplicativos do tipo work on-demand (STEFANO, 2015) mais usados para a intermediação de trabalho no Brasil. Nesse mapeamento, foi possível identificar os seguintes aplicativos operando no Brasil:


Partindo desse recorte, optou-se por uma metodologia de caráter qualitativo, baseada no método indutivo (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 86), valendo-se da técnica de pesquisa jurisprudencial. 

Metodologia

Inicialmente, realizou-se um mapeamento exploratório feito na jurisprudência dos tribunais superiores, quais sejam: Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal Superior do Trabalho (TST), Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Superior Tribunal Militar (STM).

O critério de busca utilizado foi < nome do aplicativo >. Neste tocante, importante salientar que as bases jurisprudenciais apresentam muitos resultados incongruentes (dada a grafia similar entre nome do aplicativo e outras palavras), como exemplo: utilizando o critério < Uber >, foram encontradas decisões que mencionam: UBERlândia, UBERaba, UBS; utilizando o critério < Glovo >, foram encontradas decisões que mencionam: Sr. Glover.

Assim, utilizou-se como critério de busca o nome oficial do aplicativo (ou, pelo menos, parte dele), como exemplo: Uber Tecnologia do Brasil Ltda. Para evitar a não seleção de dados por grafias diferentes (como o que ocorre, por exemplo, com a abreviação < Ltda. >, que pode ser encontrada na jurisprudência com ou sem ponto final), a pesquisa utilizou o início do nome do aplicativo, como < Uber Tecnologia >.

O número de resultados encontrados até o dia 31 de maio de 2020 foi sistematizado na tabela abaixo, que indica a quantidade de decisões (acórdãos e decisões monocráticas) encontradas que mencionam o nome do aplicativo em cada tribunal superior.

Ao analisar cada julgado, contudo, percebeu-se que, em muitos casos, embora a decisão tenha sido selecionada pelo buscador do tribunal, não discute a fundo questões ligadas ao uso do aplicativo, afastando-se do objeto de pesquisa. Assim, foram excluídas da pesquisa decisões que mencionavam apenas questões de cunho processual e decisões em que o nome do aplicativo era citado, mas não havia relação alguma com o objeto de pesquisa (a exemplo de muitas decisões em que se qualificava profissionalmente o réu de um processo como, “motorista da Uber”, mas nada se aprofundava nesse fato).

A tabela abaixo sistematiza a quantidade efetiva de julgados que discutiram, mais profundamente, questões jurídicas ligadas aos aplicativos e que, portanto, foram efetivamente utilizadas nesta pesquisa.


Conforme é possível observar na tabela 2, os aplicativos que fazem a intermediação do serviço de transporte individual de passageiros são aqueles que mais são mencionados e os únicos em relação aos quais a pesquisa retornou resultados ligados ao tema de estudo. Assim, como se verá nos itens seguintes, os resultados da pesquisa correspondem aos aplicativos Uber Tecnologia do Brasil Ltda. (Uber), Cabify Agência de Serviços de Transporte de Passageiros Ltda. (Cabify) e 99 Tecnologia Ltda. (99).

Judicialização, aplicativos e tribunais superiores – um retrato descritivo da jurisprudência

A pesquisa realizada no âmbito dos tribunais superiores permitiu constatar, inicialmente, que há discussão sobre os aplicativos de intermediação de trabalho e prestação de serviços apenas no STF, STJ e TST, não tendo sido encontradas decisões que mencionassem algum dos aplicativos no TSE e no STM. Dentre os tribunais em que foram encontradas decisões, conforme se observa no gráfico abaixo, o TST é aquele que mais apresentou resultados.

            A partir da análise das decisões encontradas, percebeu-se que o aplicativo Uber é o predominante nos resultados, isto é, a maioria das decisões encontradas diz respeito ao aplicativo Uber de forma exclusiva ou, em alguns casos, o aplicativo Uber é mencionado em conjunto com o aplicativo Cabify, conforme ilustrado no gráfico a seguir.

Quanto ao objeto das decisões analisadas, verificou-se que as discussões jurídicas são variadas e envolvem tanto temas de interesses mais amplos (como os valores da livre iniciativa e livre concorrência), quanto temas de interesses mais específicos (como cancelamento do cadastramento de motoristas nos aplicativos).

Conforme ilustrado no gráfico abaixo, as decisões analisadas gravitam em torno dos seguintes temas: implementação pelos aplicativos de medidas de higiene e prevenção durante a pandemia de Covid-19 para os motoristas; (in)existência de vínculo empregatício entre aplicativo e motorista; conflito de competência entre Justiça do Trabalho e Justiça comum e conflito territorial de competência na justiça comum; promoção da livre iniciativa, da livre concorrência, do direito ao trabalho, da inovação, da mobilidade urbana, do meio ambiente e do direito do consumidor; cancelamento de cadastro do motorista; inspeção veicular como requisito para autorização do exercício da atividade do motorista; proibição do uso de carros particulares para transporte coletivo; uso (indevido) de marca; e cobrança pelo uso da via pública.

            A distribuição de tais decisões jurídicas por tribunal superior está sistematizada na tabela a seguir:

Como se extrai da análise conjunta dos gráficos 1 e 3 e da tabela, as discussões jurídicas mais frequentes envolvem temas de competência – ou a discussão da competência – da Justiça do Trabalho. Ressalta-se que o tema mais comum (medidas de higiene e prevenção durante a pandemia de Covid-19), correspondente a 41% de todas as discussões jurídicas analisadas, foi levado à apreciação pelo TST (a partir de abril de 2020) por meio de correição parcial em razão do estado de calamidade pública em saúde decorrente da pandemia de Covid-19.

Conclusão

            A partir da pesquisa realizada, a primeira constatação possibilitada pela investigação abrange uma percepção a respeito das bases de dados dos tribunais: observou-se que, na pesquisa jurisprudencial, retornam muitos resultados que não correspondem fielmente ao critério de busca pesquisado, o que fez com que muitos resultados encontrados inicialmente fossem excluídos da análise feita neste estudo por não terem relação com o objeto de pesquisa.

            A segunda constatação envolve a variedade de discussões jurídicas evidenciadas pela pesquisa, envolvendo desde casos de repercussão geral – como a discussão pautada da livre iniciativa e livre concorrência – até casos mais pontuais, como o uso indevido de marca de aplicativo.

A terceira constatação diz respeito à predominância de duas grandes discussões jurídicas quando da judicialização dos aplicativos. A primeira, que diz respeito à proibição, limitação ou imposição de condicionantes para o oferecimento do serviço de transporte remunerado de passageiros por meio dos aplicativos; e a segunda, atinente à configuração do vínculo empregatício entre motoristas e aplicativos. Contudo, em razão da pandemia de Covid-19, uma nova, porém, correlata discussão foi levada ao TST por meio de correição parcial: o questionamento de decisões proferidas no âmbito TRTs que determinam a obrigação dos aplicativos fornecerem aos motoristas instrumentos de prevenção ao contágio por coronavírus ou a indenização dos custos com higiene.

No próximo artigo desta série, tais temas predominantes serão analisados mais profundamente. 

Referências bibliográficas

MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. 5 ed. Fundamentos de metodologia científica. São Paulo: Atlas, 2003.

STEFANO, Valerio de. The rise of the just-in-time workforce: On-demand work, crowdwork, and labor protection in the gig-economy. Comparative Labor Law & Policy Journal, v. 37, 2015.


[1] A primeira publicação da série pode ser acessada pelo seguinte link: http://ditec.esaoabsp.com/2020/06/08/novas-tecnologias-e-a-intermediacao-do-trabalho-por-aplicativos/ .


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