*Por João Eberhardt Francisco

Quando se lê ou ouve a expressão “processo eletrônico”, um conjunto de significados vem à mente: a miríade de plataformas para acesso a cada tribunal  (ePROC, e-SAJ, PJe ou PROJUDI) e seus requisitos de compatibilidade específicos, como o tamanho e formato dos arquivos que serão anexados, as versões dos aplicativos (v.g. Java), a atualização do certificado digital –  além, é claro, da disponibilidade e estabilidade dos sistemas no momento do peticionamento até sua conclusão.

Mas não é só, o processo eletrônico tem se provado mais do que uma ferramenta útil, e sim o meio (imperfeito, por certo) de assegurar a garantia do acesso à justiça.

Inicialmente pensado como mera transposição do suporte físico (papel) para o digital, de modo a diminuir gastos com armazenamento, conservação e transporte de autos processuais, além de gastos com aquisição de material (papel, tinta, caixas, pastas etc.), e também para facilitar o manuseio e leitura dos autos (pense-se em processos antigos e volumosos em papel para ilustrar como esse aspecto pode ser especialmente vantajoso), o processo eletrônico mostra sua faceta mais importante, no atual momento, por permitir a eliminação do deslocamento de advogados e partes até as dependências físicas de fóruns e tribunais para consulta dos autos[1].

Atualmente, segundo o relatório Justiça em Números, do CNJ, 83,8% dos processos em curso na Justiça Estadual em 2018 seriam eletrônicos e dos novos processos, 20,6 milhões foram por meio eletrônico, o que representa 84% dos processos iniciados naquele ano[2].

O processo eletrônico é a realidade da grande maioria daqueles que atuam com contencioso judicial, portanto, e desde sua implantação (afinal, já se vão mais de treze anos desde a entrada em vigor da lei do processo eletrônico) até hoje muita coisa mudou na prática forense.

Embora uma das justas críticas formuladas ao Código de Processo Civil vigente tenha sido, justamente, que se perdeu a oportunidade de regular mais eficientemente o processo eletrônico, explorando suas potencialidades – com o que se concorda -, é fato que em diversos dos seus artigos há previsões aplicáveis ao processo eletrônico.

Desde o art. 193 que prevê que os atos processuais podem ser total ou parcialmente digitais (o que já se poderia inferir do art. 188, que dispõe que os atos processuais não exigem forma determinada), passando-se pelo art. 209, § 1º, que prevê o registro eletrônico dos atos processuais realizados na presença do juiz, e o art. 236, § 3º, que autoriza a prática desses atos processuais por videoconferência ou outros meios tecnológicos, estão disciplinadas mudanças que podem parecer sutis ou insuficientes, mas que somadas, bem interpretadas e aplicadas tem potencial para modificar substancialmente o modo de desenvolvimento da relação processual.

Além disso, o processo eletrônico impactou e disciplina a forma de contagem dos prazos (arts. 224, 228 e 229, §2o, 231), as comunicações processuais em geral –  citações, intimações, cartas precatórias (arts. 246, V, § 1o, 263, 270 e 513, § 2o) -, a realização de audiências (arts. 334, § 7º, 385, § 3º, 453, § 1º, art. 461, § 2º), a sustentação oral em julgamentos (art. 937, § 4o), e o registro de questões submetidas ao regime de casos repetitivos e as respectivas teses jurídicas (art. 979, §§ 1o e 2o).

Não são poucas as possibilidades de uso de meios eletrônicos no processo judicial, portanto.

Alguns dos aspectos que foram introduzidos ou mesmo modificados indiretamente em razão do processo eletrônico vão muito além da mera digitalização de autos, como a eliminação de tempos mortos do processo com automação de tarefas (juntada de petições/documentos, envio de intimações para publicação), penhora eletrônica, certificação eletrônica de trânsito em julgado, identificação de temas repetitivos, identificação dos requisitos de admissibilidade dos recursos, criação de base de dados passível de consulta e análise estatística, demanda social por uniformização e transparência das informações referentes aos processos judiciais, e a interoperabilidade com órgãos externos, tais como Banco Central, Polícia Civil, Polícia Militar, cartórios extrajudiciais, promotorias e procuradorias de estado.

E isso sem falar da mudança de cultura dos sujeitos processuais, cada vez mais afeitos ao uso de ferramentas audiovisuais de postulação, e a adoção crescente de tecnologias de automação e de inteligência artificial, com as quais o processo eletrônico não pode mais ser reconhecido apenas como uma versão digital do processo físico, mas, sim, como verdadeiro novo modo-de-ser do processo, com potencialidades a serem exploradas, notadamente em relação à garantia de acesso à justiça e da efetividade da tutela jurisdicional.

*: Pesquisador da Escola Superior de Advocacia – ESA/OABSP.  Doutor e mestre em direito processual civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Graduado em direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina.


[1] Tema que já abordamos em textos anteriores: http://ditec.esaoabsp.com/2020/03/16/processo-e-oralidade-telepresencial%c2%b9/

[2] https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf , p. 95.


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