Raíssa Moreira Lima Mendes Musarra[1]

A Lei 13.243/2016[2], que instituiu o Novo Marco Regulatório Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação, incluiu medidas para estímulo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, com vistas à capacitação tecnológica, ao alcance da autonomia tecnológica e ao desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional, dentre elas as Encomendas Tecnológicas (ETECs). Seu decreto regulamentador, o Decreto nº 9.283/18[3], expõe, em seu artigo 27, que “os órgãos e as entidades da administração pública poderão contratar diretamente ICT pública ou privada, entidades de direito privado sem fins lucrativos ou empresas, isoladamente ou em consórcio, voltadas para atividades de pesquisa e de reconhecida capacitação tecnológica no setor, com vistas à realização de atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação que envolvam risco tecnológico, para solução de problema técnico específico ou obtenção de produto, serviço ou processo inovador”.

Por partes, vamos às características das encomendas tecnológicas:

 – Sua natureza jurídica é de compra pública, com dispensa de licitação.

 – Seus sujeitos são o Estado, no polo da demanda, aqui incluídos órgãos e entidades da administração pública e, no polo demandado, entidades de direito privado sem fins lucrativos ou de empresas, isoladamente ou em consórcio.  

– Estas entidades ou empresas devem ser voltadas para atividades de pesquisa e/ou ter reconhecida capacitação tecnológica (a norma considera que entidade ou empresa voltada para atividades de pesquisa é aquela que tenha experiência na realização de atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação §1º caput). Dispensa-se, contudo, formalidades como a expressa menção no ato constitutivo da contratada de realização de pesquisa entre os seus objetivos institucionais e dedicação exclusiva às atividades de pesquisa (§1, inc. I e II do Decreto nº 9.283/18).

– O objeto das encomendas tecnológicas é a realização de atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação que envolvam risco tecnológico, para solução de problema técnico específico ou obtenção de produto, serviço ou processo inovador. Estes devem ser voltados à solução de uma demanda específica, que não pode ser satisfatoriamente atendida por iniciativa espontânea do mercado, já que, muitas vezes, o produto ou processo desejado sequer existe no momento da contratação[4].

Logo, o elemento chave do objeto é o risco tecnológico.

Assim definido no inciso III do artigo 2º do Decreto nº 9.283/18, o risco tecnológico é a “possibilidade de insucesso no desenvolvimento de solução, decorrente de processo em que o resultado é incerto em função do conhecimento técnico-científico insuficiente à época em que se decide pela realização da ação”.

E, como visto, o objetivo é a solução de problema técnico específico, ou ainda, obtenção de produto inovador, serviço inovador ou processo inovador (art. 27 do Decreto nº 9.283/18). Portanto, o elemento chave na obtenção de produtos, serviços e processos é a inovação.

Inovação, de acordo com o inciso IV do artigo 2º da Lei nº 10.973/2004, alterado pela Lei nº 13.243/16 é, por sua vez, a introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo e social que resulte em novos produtos, serviços ou processos ou que compreenda a agregação de novas funcionalidades ou características a produto, serviço ou processo já existente que possa resultar em melhorias e em efetivo ganho de qualidade ou desempenho.

No âmbito do estado de São Paulo, o Decreto nº 62.817, de 04 de setembro de 2017[5], que regulamenta a Lei federal nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004, no tocante a normas gerais aplicáveis ao Estado, assim como a Lei Complementar nº 1.049, de 19 de junho de 2008, porém, anterior ao decreto federal, dispõe, sobre encomendas tecnológicas, que os órgãos e entidades da administração pública estadual podem contratá-las, contudo, a norma frisa que o problema técnico ou o produto, serviço ou processo seja de interesse público. Deste modo, a norma para instituições estaduais impõe ao demandante expressamente este requisito, de ter impresso o interesse público nos contratos.

Os custos com a contratação se encomendas tecnológicas incluem a forma de remuneração dos agentes contratados e os custos das atividades que precedem a introdução da solução, do produto, do serviço ou do processo inovador no mercado (§2º, art. 27 do Decreto nº 9.283/18) como na fabricação de protótipos; plantas pilotos; e a construção da primeira planta em escala comercial. Cabe ao contratante descrever as necessidades de modo a permitir que os interessados identifiquem a natureza do problema técnico existente e a visão global do produto, do serviço ou do processo inovador passível de obtenção (§3º, art. 27).

Contudo, ficam dispensadas as especificações técnicas do objeto diante de complexidade da atividade de pesquisa, desenvolvimento e inovação ou quando envolver soluções inovadoras não disponíveis no mercado (§3º, art. 27), pelo próprio risco inerente ao objeto do instituto, de conhecimento técnico-científico inexistente. A despeito disso, parâmetros mínimos aceitáveis para utilização e desempenho da solução, do produto, do serviço ou do processo objeto da encomenda podem ser definidos pelo contratante (§7º, art. 27). E, ainda, sem prejuízo da responsabilidade assumida no instrumento contratual, o contratado pode subcontratar determinadas etapas da encomenda, até limite previsto no termo de contrato, hipótese em que o subcontratado observará as mesmas regras de proteção do segredo industrial, tecnológico ou comercial aplicáveis ao contratado (§11).

A fase que antecede a celebração do contrato possibilita ao órgão ou entidade da administração pública a consulta a potenciais contratados para obtenção de informações necessárias à definição da encomenda. Tais consultas não implicam custos ou preferência na escolha de fornecedor ou executante. O demandante negociará com um ou mais potenciais interessados, visando a obtenção das condições mais vantajosas (§8º, art. 27), sendo a escolha do contratado orientada diante da maior probabilidade de alcance do resultado pretendido, não necessariamente para o menor preço ou custo, podendo ter como fatores de escolha a competência técnica, a capacidade de gestão, as experiências anteriores, a qualidade do projeto apresentado e outros critérios significativos de avaliação do contratado (art. 8º, inc II).

Consultas e respostas formais devem ser anexadas ao processo de contratação, salvo as que eventualmente devam ser mantidas sob sigilo (§4º, art. 27). Podem, tais órgãos ou entidades contratantes, criar comitê de especialistas para assessorar a definição do objeto da encomenda, a escolha do contratado, e o monitoramento da execução contratual e auditorias técnicas e financeiras, caso atestado o não-conflito de interesses e observada a não-remuneração por participação no comitê (§5º e §6º do art. 27).

 É importante notar que a celebração do contrato de encomenda tecnológica está condicionada à aprovação prévia de projeto específico. Este projeto deve conter etapas de execução definidas em cronograma elaborado pelo contratado em que constem a observância aos objetivos e requisitos que possibilitem a verificação do andamento de cada etapa (§8, inc. III, art 27). O próprio projeto pode ser objeto de negociação com o contratante, com possibilidade de consulta aos gestores públicos responsáveis pela contratação e ao comitê técnico de especialistas, caso haja (§9, art. 27).

A encomenda tecnológica, diante de relativa imprevisão, exige informações sobre resultados parciais alcançados, para avaliação de perspectiva de êxito e eventuais ajustes. Inalcançados os objetivos ou com alcance parcial, o contratante, através de auditoria técnica e financeira, poderá prorrogar o prazo ou considerar o projeto encerrado. Caso verificada inviabilidade técnica ou econômica, poderá o contratante, também a seu critério, rescindir o contrato por ato unilateral ou por acordo entre as partes, caso em que  serão cobertas as despesas já incorridas na execução efetiva do projeto aprovadas no cronograma (art. 28 do Decreto nº 9.283/18). 

Igualmente importante é notar que o contrato deve prever a hipótese de resultado diverso por força de risco tecnológico, pois, caso o projeto tenha, de fato, resultados diversos que sejam comprovadamente existentes em função de tal risco, o pagamento obedecerá os termos estabelecidos em contrato (§5 art. 28). Frise-se que a comprovação deve ser realizada através de avaliação técnica e financeira.

Nas encomendas tecnológicas a administração poderá negociar os direitos referentes à propriedade intelectual resultante do projeto (art. 30 do Decreto nº 9.283/18), instrumento de negociação que deve ser utilizado quando da definição do tipo da forma de remuneração escolhida já que a cessão, total ou parcial, dos direitos de propriedade intelectual ao fornecedor cria um elemento de motivação adicional à participação do contratado[6].

As encomendas tecnológicas podem englobar transferência de tecnologia[7][8] quando para viabilizar a produção e o domínio de tecnologias “essenciais para o País”, assim definidas em atos específicos dos Ministros de Estados responsáveis por sua execução. Para o caso de transferência de tecnologia, pode-se considerar que, atualmente, as áreas de tecnologias prioritárias definidas pelo MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação)  por força da Portaria nº 1.122, de 19.03.2020, no que se refere a projetos de pesquisa, de desenvolvimento de tecnologias e inovações para o período compreendido entre os anos de 2020 a 2023, são:

Tecnologias Estratégicas, nos seguintes setores: Espacial; Nuclear; Cibernética; e Segurança Pública e de Fronteira.

Tecnologias Habilitadoras, nos seguintes setores: Inteligência Artificial; Internet das Coisas; Materiais Avançados; Biotecnologia; e Nanotecnologia.

Tecnologias de Produção, nos seguintes setores: Indústria; Agronegócio; Comunicações; Infraestrutura; e Serviços.

Tecnologias para o Desenvolvimento Sustentável, nos seguintes setores: Cidades Inteligentes e Sustentáveis; Energias Renováveis; Bioeconomia; Tratamento e Reciclagem de Resíduos Sólidos; Tratamento de Poluição; Monitoramento, prevenção e recuperação de desastres naturais e ambientais; e Preservação Ambiental.

Tecnologias para Qualidade de Vida, nos seguintes setores: Saúde; Saneamento Básico; Segurança Hídrica; e Tecnologias Assistivas.

Sendo também considerados prioritários pela portaria, diante de sua característica essencial e transversal, os projetos de Pesquisa Básica, Humanidades e Ciências Sociais que contribuam, em algum grau, para o desenvolvimento das Áreas de Tecnologias Prioritárias do MCTIC.

As encomendas tecnológicas são intervenções públicas da área da ciência, tecnologia e inovação (CT&I) que atuam com uma lógica centrada na demanda, distinguindo-se das intervenções orientadas pela oferta do poder público, a exemplo das bolsas de pesquisa, investimentos e créditos à inovação, situando a tecnologia enquanto meio, e não enquanto fim[9], por isto ainda tão regradas.

Diante das especificidades derivadas do “risco tecnológico”, a encomenda tecnológica apresenta abertura para estímulos e negociações com os contratantes, visto que o esforço imaterial envolvido em projetos desta natureza não poderia ter formatações engessadas em modalidades de contratação, diante das possibilidades tecnológica que podem atuar no atendimento às demandas da Administração Pública.

Espera-se que seu emprego seja orientado pelos princípios inscritos na Lei nº 10.973/2004, sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, especialmente o da promoção das atividades científicas e tecnológicas como estratégicas para o desenvolvimento econômico e social e o da redução das desigualdades regionais.


[1] Pesquisadora da Escola Superior da Advocacia de São Paulo – ESAOAB/SP. Pesquisadora em nível de Pós-doutorado no Instituto de Energia e Ambiente (IEE/USP). Pesquisadora do RCGI (Research Centre for Gás Innovation)/USP. Advogada, mestre e doutora em Ciências Sociais (UFMA; UFPA), com estágio doutoral sanduíche na Universidade Paris XII, Villetaneuse (Sociologie/Droit).

[2] BRASIL, LEI Nº 13.243, DE 11 DE JANEIRO DE 2016. Dispõe sobre estímulos ao desenvolvimento científico, à pesquisa, à capacitação científica e tecnológica e à inovação.

[3] DECRETO Nº 9.283, DE 7 DE FEVEREIRO DE 2018. Regulamenta a Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004, a Lei nº 13.243, de 11 de janeiro de 2016 para estabelecer medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, com vistas à capacitação tecnológica, ao alcance da autonomia tecnológica e ao desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional.

[4] RAUEN, André Tortato; BARBOSA. Encomendas tecnológicas no Brasil : guia geral de boas práticas / Brasília : Ipea, 2019.

[5] SÃO PAULO, DECRETO Nº 62.817, DE 04 DE SETEMBRO DE 2017. Regulamenta a Lei federal nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004, no tocante a normas gerais aplicáveis ao Estado, assim como a Lei Complementar nº 1.049, de 19 de junho de 2008, e dispõe sobre outras medidas em matéria da política estadual de ciência, tecnologia e inovação.

[6] RAUEN, André Tortato; BARBOSA. Encomendas tecnológicas no Brasil : guia geral de boas práticas / Brasília : Ipea, 2019.

[7]  Contratos de transferência de tecnologia em podem ser categorizados como (a) propriedade industrial, licenças e cessões que se referem a um direito da propriedade industrial já depositado ou registrado no INPI, como marcas, patentes, desenhos industriais etc.; (b) tecnologia não patenteada, que não envolve direitos da propriedade industrial objeto de registro na autarquia federal, como segredos e know-how; (c) serviços técnicos que envolvem a obtenção de técnicas e métodos de aplicação de tecnologia; e (d) projetos de engenharia, como o projeto turn-key, que contém as informações técnicas e as tecnologias desenvolvidas para a criação de uma planta industrial (RIBEIRO e BARROS, 2014).

[8] RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; BARROS, Marcelle Franco Espíndola. Contratos de transferência de tecnologia Custos de transação versus desenvolvimento (RIBEIRO e BARROS, 2014

[9] RAUEN, André Tortato; BARBOSA. Encomendas tecnológicas no Brasil : guia geral de boas práticas / Brasília : Ipea, 2019.


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