Raíssa Moreira Lima Mendes Musarra[1]
O art. 19 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais)[1], já previa que, no âmbito dos juizados especiais, as intimações poderiam ser realizadas por meio idôneo de comunicação, “As intimações serão feitas na forma prevista para citação, ou por qualquer outro meio idôneo de comunicação.” O artigo primeiro desta lei estabelece, ainda, que o processo dos Juizados será orientado pelos “critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação”.
A lei nº 11.419, de 2006,[2] que dispôs sobre a informatização do processo judicial, alterando a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – (o antigo Código de Processo Civil), já versava sobre o emprego da informatização no processo judicial quando já admitida […] “o uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais será admitido nos termos desta Lei”, incentivando a inovação tecnológica e permitindo a comunicação de atos processuais por meios eletrônicos, desde que previstos em lei.
O novo CPC (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015)[3], por sua vez, apresenta no artigo 193, a possibilidade de que atos processuais sejam total ou parcialmente digitais, de forma a permitir que sejam produzidos, comunicados, armazenados e validados por meio eletrônico, na forma da lei.
Além disso, seu artigo 195 aborda o registro dos atos processuais eletrônicos, ordenando que deverão ser feitos em padrões abertos, com atendimento dos requisitos de autenticidade, integridade, temporalidade, não repúdio, conservação e, nos casos que tramitem em segredo de justiça, a confidencialidade necessária, observada a infraestrutura de chaves públicas unificada nacionalmente, nos termos da lei.
No mesmo sentido, o artigo 196 do Código de Processo Civil assevera que a regulamentação da prática e a comunicação oficial dos atos processuais, por meio eletrônico, fica a cargo do Conselho Nacional de Justiça – CNJ a quem cabe velar, inclusive, pela compatibilidade dos sistemas eletrônicos, disciplinando a incorporação progressiva de novos avanços tecnológicos e editando, com esta finalidade, os atos normativos que forem necessários, respeitadas as normas fundamentais do Código de Processo Civil.
De fato, em 2017, decisão do Conselho Nacional de Justiça que, por meio do julgamento virtual do Procedimento de Controle Administrativo (PCA) 0003251-94.2016.2.00.0000[4] aprovou, por unanimidade, a utilização do referido aplicativo como ferramenta para intimações em todo o Judiciário, no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. A decisão deu-se para ratificar integralmente a Portaria Conjunta n. 01/2015, do Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Piracanjuba/GO elaborada em conjunto com a Ordem dos Advogados do Brasil, no Plenário Virtual de 23 de junho de 2017 do CNJ.
A referida portaria regulamentava o uso do aplicativo whatsapp como ferramenta hábil à realização de intimações no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Comarca de Piracanjuba/GO, às partes que voluntariamente aderissem aos seus termos. O pedido foi instaurado por Gabriel Consigliero Lessa, Juiz de Direito da Comarca de Piracanjuba/GO, para impugnar decisão proferida pelo Corregedor-Geral da Justiça do Estado de Goiás, Desembargador Gilberto Marques Filho, que não ratificou a Portaria Conjunta n. 01/2015 [5]e determinou a sua revogação.
Na oportunidade, Gabriel referenciou o programa “Redescobrindo os Juizados Especiais”, lançado pela Corregedoria Nacional de Justiça em 2015,que objetivou retomar a ideia de celeridade no âmbito dos juizados especiais, valendo-se do uso da tecnologia, e o recebimento de menção honrosa no Prêmio Innovare, em 2015, a ele conferido, que versou sobre a viabilidade deste meio de intimação.
A portaria previa a seguinte ritualística:
Ferramenta: aplicativo whatsapp;
Imagem constante no aplicativo: arte gráfica do Tribunal, símbolos da República ou outros criados com fim específico para o Juizado Cível e Criminal da Comarca;
Número telefônico: o juízo utilizará número telefônico exclusivamente para essa finalidade; a parte será contatada pelo número telefônico que indicar;
Adesão: facultativa, após solicitação expressa. O silêncio implica manutenção dos métodos convencionais de comunicação;
Público-alvo: partes, membros do Ministério Público, autoridades policiais e integrantes de outros órgãos públicos, após solicitação expressa;
Dinâmica: serão encaminhadas as manifestações jurisdicionais em forma de imagem, via whatsapp,durante o expediente forense, para o telefone indicado pela parte. Esta será considerada intimada caso responda à mensagem no prazo de 24 horas, ainda que fora do horário de expediente forense. Caso não haja resposta no prazo indicado, haverá intimação convencional;
Penalidades: o descumprimento dos termos da Portaria por duas vezes, consecutivas ou alternadas, implicará o desligamento do aderente, o qual somente poderá solicitar nova inclusão após o período de 6 meses. Será também desligado o participante que enviar textos, imagens e vídeos com finalidade desvirtuada da contida na Portaria;
Contagem de prazos: na forma da legislação civil;
Ressalva: a ferramenta não será utilizada para processos que tramitarem em segredo de justiça;
Execução: foram destacados dois servidores da serventia para cumprimento dos termos da Portaria;
Esclarecimentos sobre a Portaria: foi realizada palestra no auditório da Subseção da OAB da comarca para informar sobre o novo procedimento;
Publicidade: afixação da Portaria no placar do Fórum, na secretaria do Juizado e na sede da Subseção da OAB da Comarca.
Sete meses após a decisão favorável do CNJ, vários tribunais aderiram à tecnologia, onze tribunais de Justiça já haviam regulamentado o uso do aplicativo de mensagens nos trâmites processuais: Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Alagoas, Amazonas, Paraná, Maranhão, Ceará, Acre e Distrito Federal, e seu uso estava em fase de testes em Sergipe e no Pará[6].
Contudo, até hoje, nem todos os tribunais do país aderiram ao uso da tecnologia, e alguns mantiveram-se silentes diante de sua possibilidade de implementação.
Neste cenário, é lançado Projeto de Lei no Senado, o PL Nº 176, de abril de 2018[7], pelo Senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), o projeto de lei, foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) em fevereiro de 2020, em decisão final, e pretende modificar o Código de Processo Civil para incluir nesta lei “a permissão intimação eletrônica por meio de aplicativo de mensagens multiplataforma”.
Nos termos do projeto de lei, não há vinculação exclusiva com o aplicativo de mensagens WhatsApp, podendo ser ampliado a outros aplicativos de mensagem multiplataforma. Como a primeira portaria de Piracanjuba, o projeto prevê que a utilização do aplicativo para a realização apenas de intimações, e não de citações, que continuarão a ser realizadas pelas formas ordinárias de comunicação previstas pela lei processual (correio, oficial de justiça e edital). Contudo, permite uso mais amplo que em âmbito de juizados, abrigando amplamente intimações em Processo Civil.
Insta apresentar os termos do projeto, neste sentido, em que a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil) deve passar a vigorar acrescida do seguinte art. 270-A (caso assim se mantenha a redação na Câmara dos Deputados):
Art. 270-A. As intimações poderão ser realizadas eletronicamente por meio de aplicativo de mensagens multiplataforma disponibilizado pelo juízo aos advogados e às partes que manifestarem seu interesse por essa forma de intimação.
§ 1º A intimação será considerada cumprida se houver confirmação de recebimento da mensagem por meio de resposta do intimando no prazo de vinte e quatro horas de seu envio.
§ 2º A resposta do intimando deverá ser encaminhada por meio do aplicativo, em mensagem de texto ou de voz, utilizando-se a expressão “intimado(a)”, “recebido”, “confirmo o recebimento”, ou outra expressão análoga que revele a ciência da intimação
§ 3º Ausente a confirmação de recebimento da intimação no prazo do § 1º, deverá ser procedida outra intimação na forma ordinariamente prevista na legislação processual.
§ 4º A não confirmação de recebimento de intimação no mesmo processo por três vezes consecutivas ou alternadas autorizará a exclusão do interessado do cadastro do juízo para intimação por meio do aplicativo de mensagens multiplataforma, vedando-se o recadastramento do excluído nos seis meses subsequentes.
§ 5º No ato do cadastramento, o interessado deverá informar o número de telefone por meio do qual deseja ser intimado, responsabilizando-se pelo recebimento das informações no número informado.
§ 6º O cadastramento poderá ser requerido em nome da Sociedade de Advogados, devendo ser colacionado o ato constitutivo e o nome dos advogados associados, bem como a inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil.
§ 7º Presumem-se válidas as intimações dirigidas ao número de telefone cadastrado pelo interessado, em que haja confirmação de recebimento na forma do § 3º, ainda que posteriormente o interessado comprove que outra pessoa tenha confirmado o recebimento, com inclusão da hipótese de prova de alteração da titularidade do número informado, salvo se a modificação tiver sido devidamente comunicada ao juízo.
§ 8º No ato da intimação, o servidor responsável encaminhará pelo aplicativo a imagem do pronunciamento judicial, identificando:
I – o processo ao qual se refere o ato;
II – os nomes das partes e de seus advogados, com o respectivo número de inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, ou, se assim requerido, da sociedade de advogados; e
III – a informação de que deve haver a confirmação do recebimento no prazo de vinte e quatro horas para a validação da intimação processual.
§ 9º As intimações por meio do aplicativo serão encaminhadas durante o expediente forense.
§ 10. Observado o disposto no § 1º, recebida pelo juízo a confirmação de recebimento da intimação fora do horário do expediente forense ou em dia não útil, os prazos fluirão a partir do dia útil imediatamente posterior.
§ 11. As intimações realizadas na forma deste artigo serão certificadas nos autos.
Assim, advogados e partes poderão manifestar interesse (facultativamente) à adesão. Extrai-se dos termos do projeto que haverá um cadastro que oportunize tais intimações. E elas só serão consideradas cumpridas através de RESPOSTA do intimando no prazo de 24 horas, resposta essa que deve ser expressa, por texto ou voz, não sendo válida, a princípio, a marcação de recebimento automática dos aplicativos.
Caso não haja confirmação, outra forma de intimação deve ser adotada e, caso o intimando esteja omisso em suas respostas à intimação por três vezes no processo, seu cadastro será excluído, vedando recadastramento nos próximos seis meses. Vale frisar que o requerimento de cadastro que vincule o número de telefone pode ser feito em nome de Sociedade de Advogados, devendo, todos os cadastrados, atentar ao fato de que, caso haja alteração de titularidade do número de telefone, esta deve ser devidamente comunicada ao juízo. Além disso, as intimações devem ser encaminhadas durante expediente forense e a imagem do pronunciamento judicial deve, necessariamente, conter o número do processo, nome das partes, advogados ou, se assim requerido, da sociedade de advogados.
De acordo com a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) o projeto detalha todos os aspectos para o uso do aplicativo de comunicação, e tem estabelecidas todas as regras de confiabilidade, eficácia e ciência da transmissão e recebimento das mensagens, além das penalidades para o caso de descumprimento. Assim, a análise na referida comissão é positiva, e a atual fase de tramitação é o encaminhamento à Câmara dos Deputados, efetuado em abril deste ano, para que haja alteração na redação do CPC. Resta, ainda, a definição legal a ser adotada do que seria “Aplicativo de Mensagem Multiplataforma[8]”.
Ao que parece, sob o prisma do artigo 196 do Código de Processo Civil, bastaria norma editada pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ disciplinando a incorporação de tal ferramenta. Contudo, diante de seu paulatino empoderamento normativo do CNJ e da inexpressiva aderência dos demais tribunais sobre a matéria, mais uma modificação no novo CPC está anunciada para imprimir minúcias à nossa sociedade legalista, tal qual aqui se apresenta, da também da inovação legalista ou legalista da inovação.
De qualquer forma, o
nascimento da norma revelará o fenômeno da influência dos “impulsos isolados”[9] na criação das leis. Além
dos princípios de celeridade, informalidade e simplicidade e previsão de
informalização, ações individuais acompanhadas por decisões colegiadas,
replicadas e aprimoradas por tribunais espelham estes impulsos, concretizando a
integração destes objetivos em todos os âmbitos do Processo Civil.
[1] BRASIL, LEI Nº 9.099, DE 26 DE SETEMBRO DE 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências.
[2] BRASIL, LEI Nº 11.419, DE 19 DE DEZEMBRO DE 2006. Dispõe sobre a informatização do processo judicial; altera a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil; e dá outras providências.
[3] BRASIL, LEI Nº 13.105, DE 16 DE MARÇO DE 2015. Código de Processo Civil.
[4] CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Procedimento de Controle Administrativo (PCA) 0003251-94.2016.2.00.0000
[5] TJGO. Portaria Conjunta n. 01/2015, dispõe sobre utilização do aplicativo Whatsapp como ferramenta para intimações de processos em trâmite no âmbito do Juizado Cível e Criminal de Piracanjuba/GO.
[6] Boletim de Notícias Conjur: 11 tribunais de Justiça já usam o WhatsApp para envio de intimações, 31 de janeiro de 2018. Revista Consultor Jurídico.
[7] SENADO, Atividade Legislativa. Projeto de Lei do Senado n° 176, de 2018 Acesso em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/132896
[8] Assim, talvez o termo possa referir-se à compatibilidade com as principais plataformas de telefonia móvel, incluindo iOS, Android, BlackBerry, Windows Phone, Symbian e Palm (Gustavo Hartmann, G Stead, and A DeGani. Cross-platform mobile development. Tribal, Lincoln House, The Paddocks, Tech. Rep, (March): 1–18, 2011. URL https://wss.apan.org/jko/mole/SharedDocuments/ Cross-PlatformMobileDevelopment.pdf.), o que se depreende com auxílio do conceito de Plataforma enquanto “um conjunto de estruturas, ferramentas e serviços que não apenas permitem ao usuário criar um aplicativo móvel, mas também para configurá-lo, empacotá-lo e distribuí-lo nas lojas de aplicativos ou na nuvem. As plataformas normalmente incluem algum tipo de ambiente de desenvolvimento integrado para facilitar a construção do aplicativo, documentação abrangente, ferramentas de suporte e automação” (Gustavo Hartmann, G Stead, and A DeGani. Cross-platform mobile development. Tribal, Lincoln House, The Paddocks, Tech. Rep, (March): 1–18, 2011. URL https://wss.apan.org/jko/mole/SharedDocuments/ Cross-PlatformMobileDevelopment.pdf.). Ou ainda, o “multi” pode designar os diversos tipos de mídia suportados: texto, áudio, vídeo. Necessitando, contudo, de precisão conceitual para fins normativos.
[9] MENDES, Gilmar. Questões Fundamentais de Técnica Legislativa. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado. RERE, 2007, n. 11. Disponível em https://www.al.sp.gov.br/StaticFile/ilp/questoes_fundam_de_tecn_legis_-_gilmar_mendes.pdf. Acesso em 08 de junho de 2020.
[1] Advogada, Pesquisadora da Escola Superior da Advocacia de São Paulo–ESAOAB. Pesquisadora em nível de Pós-doutorado no Instituto de Energia e Ambiente (IEE/USP). Mestre e doutora em Ciências Sociais (UFMA; UFPA), com estágio Universidade Paris XII.
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