Por João E. Francisco*
Fiquem em casa! Essas são as palavras de ordem do momento, o distanciamento social é a medida mais efetiva para evitar a rápida propagação da pandemia do chamado coronavírus (COVID 19).
Alarmados com a situação dos países em que a epidemia chegou antes de nós, a sociedade está começando nesse momento (março de 2020) a adotar o isolamento dos indivíduos, em auto-quarentena, e o Poder Judiciário vem tomando medidas para viabilizar o trabalho remoto ou suspender audiências e prazos[1].
Em alguns estados, foram adotadas soluções para as quais em tempos normais havia certa resistência, tais como a videoconferência para despachar com magistrados, e o trabalho remoto por parte dos servidores do judiciário[2]. Desse modo, as atividades essenciais continuam sendo realizadas, com a diminuição do risco de rápida contaminação das pessoas.
Tem-se dito que essas mudanças bruscas exigidas para refrear a propagação do coronavirus podem gerar uma correspondente mudança de comportamento ou de percepção que perdure após a superação dessa crise.
Há muito é conhecido o chiste de que a maior parte das reuniões poderia ser substituída por e-mails, que seriam mais rápidos e eficientes, ainda que algo importante se perdesse com a falta da interação humana.
Da mesma forma, são conhecidos os benefícios do trabalho em escritório, com a troca rápida de informações pessoalmente, com a concentração de recursos físicos, materiais, de comunicação e tecnologia em um só ambiente, além, não menos importante, do aspecto social.
A possibilidade de trabalho à distância, por sua vez, economiza tempo e energia necessários para o deslocamento, gera benefícios comprovados de produtividade, e, colateralmente – mas talvez devêssemos pensar nisso como um dos principais efeitos a serem almejados – diminuição de trânsito, poluição, acidentes, dentre outros.
No processo judicial, da mesma forma há perdas e ganhos com a adoção de formas de tecnologia que permitam o acesso remoto aos autos, participação via videoconferência em audiências e sessões de julgamento, e mesmo a forma da realização do contraditório no processo.
Como vimos na coluna anterior, também em relação a este tema costuma-se minimizar o impacto da tecnologia como se se tratasse apenas da realização dos atos processuais, como sempre o foram, tão-somente em um outro suporte. A petição é lida na tela de um computador e não em papel, apenas isso.
As vantagens do uso de tecnologia no processo judicial são normalmente relacionadas a questões de eficiência, o processo seria mais célere, o que é necessário e desejável, mas pouco se diz a respeito do incremento da qualidade da prestação jurisdicional.
Para isso, é útil retomar um conceito um tanto quanto esquecido, ou ao menos desprezado, mais recentemente, que é o da oralidade.
A oralidade não se resume a expressão dos atos processuais por meio da fala, mas corresponde a uma cláusula geral que determina que, tanto quanto possível, o processo guarde a simplicidade procedimental, a concentração dos atos em audiência, de forma oral, perante o juiz, e a economia processual.
A lógica por trás dessa brilhante ideia, que poucas vezes se consegue aplicar na prática, é a de que estando todos reunidos, as partes, por seus advogados, e o juiz, comunicam-se diretamente, resolvendo os incidentes na mesma oportunidade em que são suscitados, o que serviria ao debate cooperativo entre os sujeitos processuais.
Com a introdução de formas de tecnologia de comunicação, as possibilidades de diálogo oral, inclusive com sua preservação (gravação) se ampliam. E se os sujeitos processuais não estão em no mesmo local, na presença um dos outros, não se pode dizer que não exista propriamente imediatidade, para alguns a principal característica da oralidade, pois transmissão de vídeo é instantânea, e com qualidade cada vez melhor.
Pode-se reconhecer perdas na ausência de contato direto presencial, especialmente em situações em que o juiz avalia o comportamento da testemunha durante seu depoimento, mas é inegável que algumas características da oralidade e da imediatidade são preservadas e, até mesmo, ampliadas, considerando-se que o processo judicial civil é majoritariamente escrito.
A utilização de meios de tecnologia no processo seria capaz de resgatar a oralidade, ao menos em relação à simplificação do procedimento e efetivação do contraditório, como ocorre quando o magistrado analisa a gravação de uma audiência para o julgamento, quando se torna possível ponderar e refletir sobre o que foi dito e, mais, como foi dito, de forma que a transcrição escrita não permite.
Diz-se então que a oralidade se torna materializada, se perde em espontaneidade e imediatidade, ganha em precisão, conservação dos atos processuais, e expande as possibilidades de oralidade para situações em que ela não era admitida, como no julgamento de recursos.
A escrita, por sua vez, pode se tornar mais “oralizada”, suponhamos, por exemplo, que pela facilidade em se redigir petições e apresentar petições por meio digital, e a possibilidade de se economizar tempo nessa atividade, que fossem admitidas (por negócio processual ou modificação legislativa), diversas trocas de informações em um determinado intervalo de tempo, com a flexibilização da preclusão. Certamente estaríamos diante de um contraditório mais dialogado, o que não significa, importante ressaltar, menor combatividade dos respectivos advogados.
Em relação à eficiência, sabe-se que o processo eletrônico representou grande avanço, mas ainda é motivo de justas reclamações por quem com ele lida diariamente. Alguns dos possíveis avanços, como a eliminação do tempo “morto” dos processos, já que não deveriam ser necessários procedimentos como juntada de petições e documentos, ainda não foram atingidos.
No início da crise do COVID 19 era possível encontrar com alguma facilidade comentários em redes sociais em que se questionava a suspensão dos prazos, já que não seria necessária a presença dos advogados no foro para protocolo das petições.
Ocorre que a tecnologia não prescinde das pessoas, mesmo ferramentas avançadas são criadas, utilizadas e mantidas por indivíduos, e se no meio de uma pandemia é possível continuar trabalhando, de alguma forma, temos a agradecer e refletir o papel que queremos ver exercido por um e outro no processo judicial.
*: Pesquisador da Escola Superior de Advocacia – ESA/OABSP. Doutor e mestre em direito processual civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Graduado em direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina.
Nota do Autor: Esse artigo toma emprestado reflexões que propus com maior profundidade em artigo publicado sob o título “A oralidade e a relação entre o juiz, os advogados e as partes no contexto da informatização do processo”, no livro “Garantismo Processual: garantias constitucionais aplicadas ao processo”, coord. José Roberto dos Santos Bedaque, Lia Carolina Batista Cintra e Elie Pierre Eid, ed. Gazeta Juridica, Brasília, 2016, p. 413.
[1] “Neste dia 14 de março de 2020 o Egrégio Conselho Superior da Magistratura deliberou autorizar trabalho remoto para Magistrados (primeiro e segundo graus) com doenças crônicas ou portadores de deficiências físicas e para aqueles com 60 anos ou mais, pelo prazo de 14 dias.” (http://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=60610&pagina=1 , acesso em 14/03/2020).
[2] https://www.conjur.com.br/2020-mar-15/tribunais-suspendem-audiencias-prazos-conter-coronavirus
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