*Por João Eberhardt Francisco

Com as notícias de que a pandemia do COVID 19 será mais longa do que se esperava inicialmente, medidas pensadas de forma emergencial passam a ser substituídas por formas mais permanentes de trabalho à distância, a permitir que se mantenha ao máximo possível as atividades produtivas durante a quarentena.

O trabalho telepresencial ou home office já é uma realidade na vida da maior parte dos advogados nesse momento; ferramentas como skype, zoom, trello, youtube estão se tornando rapidamente cada vez mais conhecidas dos profissionais, agora como produtores de conteúdo e não mais apenas como consumidores.

E, dentre essas ferramentas, aplicativos e plataformas, ganham ainda maior destaque nesse momento os chamados online dispute resolution, as formas de resolução de disputas online.

É certo que esses mecanismos não são exatamente novos e, especialmente, a plataforma consumidor.gov tem ganhado proeminência após sua adoção por diversos órgãos da administração pública, tendo inclusive sido integrado ao processo judicial eletrônico[1] (indo, portanto, muito além do seu objetivo inicial).

Pensada como um mecanismo de aproximação entre fornecedores e consumidores, a plataforma vem sendo identificada como um mecanismo de resolução online de conflitos, ainda que somente possa ser caracterizada dessa forma se adotado um conceito bastante amplo do que sejam os ODRs[2], sendo melhor definida como um “sistema de reputação”[3].

Em sua origem, as plataformas de resolução online de disputas buscavam reproduzir os métodos consensuais presenciais no ambiente digital[4]. Contudo, como é próprio da tecnologia, ao fazer essa transposição, houve uma modificação fundamental da forma como se solucionavam as controvérsias.

O que antes era visto como limitação – como a falta de interação presencial e o registro necessário das informações trocadas -, passou a ser considerado vantagem. Além disso, conforme os sistemas evoluíram, as informações passaram a ser utilizadas na prevenção dos conflitos e na facilitação da solução daqueles que continuassem a surgir[5].

Por isso, pode-se dizer que um sistema de resolução de conflitos online adapta técnicas dos métodos consensuais ao ambiente virtual, auxilia a descrição do caso, fornece informações, apoia a tomada de decisões com auxílio de inteligência artificial – inclusive com sugestão de soluções – e, caso não se alcance o acordo, encaminha a disputa para o meio de resolução adequado[6].

As vantagens são muitas e evidentes. Em tempos de necessário distanciamento social, elas se destacam ainda mais. Todavia, não se trata de uma panaceia, obviamente, e os limites desses métodos também merecem ser analisados.

Uma das maiores “vantagens” comumente apontada para a resolução de conflitos online é a desnecessidade de representação por advogado[7]. Em uma realidade de carência de informação sobre direitos, em que indivíduos por vezes sequer são capazes de identificar o problema que enfrentam como sendo jurídico, a orientação de um advogado pode ser a diferença entre buscar o cumprimento do direito ou “deixar pra lá”.

Felizmente, a importância da participação de advogados, especialmente no panorama sócio-jurídico nacional, foi reconhecida pela Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor, passando-se a admitir a representação do reclamante por advogado[8].

Além disso, a realização de um acordo depende de outros fatores que não podem ser desconsiderados, tais como as expectativas de consumidores, por exemplo, sobre o produto ou serviço contratados, a disposição do fornecedor em corrigir práticas e atuar em conformidade com o conjunto de regras que lhe são impostas, e, de forma ainda mais contundente, em seguir parâmetros eventualmente estabelecidos pela jurisprudência.

Afinal, sem a atuação do judiciário, existem situações em que simplesmente não se saberia quais são os parâmetros a serem seguidos, pois não foram estabelecidos na legislação, como o valor da indenização pela perda de um voo, por exemplo.

Evidentemente, em se tratando de conciliação, é possível e até mesmo desejável que as partes estabeleçam os parâmetros elas próprias, mas até que ponto se pode dizer, conforme o ditado, que melhor um mau acordo que uma boa demanda?

Doravante, deveremos observar o avanço acelerado na utilização de meios de resolução online de disputas – o que, na maior parte dos casos, será bom. O potencial desses mecanismos é enorme e conhecer seus limites – tecnológicos e jurídicos – não é ser contrário à sua adoção, mas contribui para sua evolução no sentido da ampliação do acesso à justiça.

* Pesquisador da Escola Superior de Advocacia – ESA/OABSP. Doutor e mestre em direito processual civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Graduado em direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina.


[1] Conforme Acordo de Cooperação Técnica n. 16/2019 firmado entre o Conselho Nacional de Justiça e o Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio de sua Secretaria Nacional do Consumidor para “incremento de métodos autocompositivos de resolução de controvérsias na seara consumerista, o que alcança a integração da plataforma ‘consumidor.gov’ ao Processo Judicial Eletrônico”. Disponível em https://wwwh.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2019/06/20b9300f43209abf4670bb17fb02b7b4.pdf.

2] Conforme a descrição encontrada no próprio site:  “O Consumidor.gov.br é um serviço público e gratuito que permite a interlocução direta entre consumidores e empresas para solução alternativa de conflitos de consumo pela internet. Ele não constitui um procedimento administrativo e não se confunde com o atendimento tradicional prestado pelos Órgãos de Defesa do Consumidor. Sendo assim, a utilização desse serviço pelos consumidores se dá sem prejuízo ao atendimento realizado pelos canais tradicionais de atendimento do Estado providos pelos Procons Estaduais e Municipais, Defensorias Públicas, Ministério Público e Juizados Especiais Cíveis. A principal inovação do Consumidor.gov.br está em possibilitar um contato direto entre consumidores e empresas, em um ambiente totalmente público e transparente, dispensada a intervenção do Poder Público na tratativa individual.” (https://www.consumidor.gov.br/pages/conteudo/publico/1).

[3] “Sistemas de reputação agregam informações de consumidores acerca das experiências obtidas, por meio das transações com empresas. As informações apresentadas nesses sites são compreendidas como um mecanismo para construção da confiança dos consumidores (Swamynathan, Almeroth, & Zhao, 2010). Em alguns casos, esses sistemas também atuam na verificação de determinados padrões ou requerimentos considerados importantes para redução dos riscos percebidos por parte dos consumidores, por meio da aferição de selos e certificados para as empresas inseridas em seu portfólio (Edelman, 2011; Park, Bhatnagar, & Rao, 2010).” (FEITOSA, Douglas de Lima; GARCIA, Leandro Sumida Garcia. Sistemas de Reputação: Um Estudo sobre Confiança e Reputação no Comércio Eletrônico Brasileiro. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/rac/v20n1/1415-6555-rac-20-01-00084.pdf, acesso em 31/07/2019, p. 90).

[4] Conforme ETHAN KATSH e ORNA RABINOVICH-EINY, em Digital Justice:Technology and the Internet of Disputes, Nova York: Oxford University Press, 2017, p. 33.

[5] “In an ODR system, data is generated that reveals patterns of disputes and provides opportunities to both facilitate and monitor consensual agreements, thus making disputes in the future less likely” (KATSH, Ethan; RABINOVICH-EINY, Orna. Ob. cit., p. 35)

[6] Conforme nosso “Acesso à justiça e a obrigatoriedade da utilização dos mecanismos de online dispute resolution: um estudo da plataforma consumidor.gov”, In Direito, Processo e Tecnologia, coord. Erik Navarro Wolkart, Francisco de Mesquita Laux, Giovani dos Santos Ravagnani, Paulo Henrique dos Santos Lucon, RT, São Paulo, 2020.

[7] Aliás, a Comissão de Direito do Consumidor da OAB-SP emitiu nota técnica em que apontava: “Atualmente o portal “consumidor.gov.br” não oportuniza ao consumidor a assistência por um advogado. Igualmente o Decreto Presidencial analisado, permissa vênia, não regulamentou adequadamente o artigo 4º, V, do CDC, posto que não dialogou com os demais direitos assegurados pela Lei nº 8.078/90, em especial ao não assegurar o direito previsto no artigo 6º, VII, do CDC, qual seja, direito à proteção jurídica, administrativa e técnica aos consumidores.” (http://www.oabsp.org.br/noticias/2020/01/nota-tecnica-2013-plataforma-do-consumidor.13382)

[8] “Agora, além do cidadão poder registrar reclamação em seu próprio nome, os advogados poderão fazer o procedimento via representação legal de pessoa física ou com mandato conferido por procuração, exigindo-se apenas que os procuradores apresentem na plataforma a documentação específica.” (https://www.conjur.com.br/2020-fev-02/advocacia-atuar-reclamacoes-site-consumidorgov)


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