*Por João Eberhardt Francisco

O que você pensa quando ouve a expressão “prova documental”? Em papéis contendo informações sobre uma determinada situação jurídica?

Se a resposta é sim, pense novamente. Boa parte das nossas relações, jurídicas ou que produzem efeitos jurídicos, não se materializa mais dessa forma, ocorre total ou parcialmente no ambiente virtual.

Propostas de contratos são efetuadas via e-mail, assim como seu aceite, muitas vezes sem qualquer forma de assinatura digital, quando pela natureza do negócio não se exija essa formalidade. Compras são realizadas em sites, muitas vezes em valores vultuosos, sem que se tenha um só documento escrito, a assinatura e nem mesmo a aposição da senha do cartão de crédito pelo comprador.

Tratativas negociais são realizadas por e-mails, aplicativos de mensagens, ou aplicativos de gerenciamento de projetos, que registram passo a passo cada modificação inserida pelas partes.

Descobrem-se atos de concorrência desleal praticados com o direcionamento para empresa que comercializa serviço ou produto semelhante ao do seu cliente quando as palavras-chaves são inseridas no sistema de buscas online.

Prontuários médicos hospitalares são inteiramente criados e armazenados nos servidores dos hospitais, sem que exista uma cópia física.

Até a carteira de trabalho, de habilitação para dirigir, de eleitor e, last but not least, da Ordem dos Advogados do Brasil, são digitais atualmente.

Enfim, são muitas, muitíssimas as situações em que as formas digitais dos documentos substituem o papel impresso, o que, por suas evidentes vantagens, e ressalvados aqueles que se dedicam ao estudo das questões relacionadas a esse fenômeno, não induz a qualquer reflexão cotidiana sobre essa profunda alteração da forma como nos relacionamos.

Assim também ocorre em relação ao processo judicial. Excetuando-se os autores, ainda pioneiros, que se dedicam ao estudo da prova digital, o tema não suscita maiores controvérsias, não obstante a centralidade que rapidamente vem tomando[1]. E-mails e mensagens trocadas por aplicativos de celular são usadas correntemente como prova documental em processos judiciais sem maiores debates e o próprio Código de Processo Civil prevê a possibilidade de se realizar ata notarial para registrar “dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos” (art. 384, parágrafo único).

Entretanto, nos parece que algumas questões merecem maior atenção, pois a informação digital tem algumas características que são especialmente desafiadoras para seu controle como meio idôneo a permitir o contraditório e influenciar o convencimento do juiz.

A primeira das características que destacamos é que, potencialmente, a informação digital pode atingir grande volume[2].

A facilidade de incremento, troca e armazenamento de dados[3] pode tornar especialmente difícil sua análise em um processo judicial, haja vista que exigiria prova pericial para extrair e organizar essas informações, ensejando discussões acerca da sua integridade, confiabilidade e, principalmente, relacionadas ao dever de cooperação (arts. 6o, 378 e 379 do Código de Processo Civil).

Tão importante quanto, o volume expressivo de documentos pode ser causa de violação do dever de boa-fé processual por comportamento abusivo (art. 77, III do CPC), quando a parte faz juntar nos autos uma quantidade desnecessariamente extensa de informações com o intuito de dificultar ou impedir a defesa do seu adversário[4].

A segunda característica que queremos destacar aqui são aquelas relacionadas a direitos fundamentais (dos consumidores, dos trabalhadores ou parceiros comerciais) e a segredos de negócio ou quaisquer outras que licitamente confiram vantagens competitivas, enfim, aqueles previstos no art. 2o da LGPD.

A necessidade de se anonimizar dados ou mesmo excluí-los do âmbito da produção de prova em processo judicial é uma preocupação que ganha outro relevo quando não se está apresentando um documento, um registro ou mesmo um livro contábil, mas, sim, uma base de dados.

A análise preliminar das informações e a produção de prova, ou seja, sua submissão ao contraditório, deve estar condicionada a sua relevância no processo, portanto, o parágrafo único do art. 370, deve ser interpretado de forma que limite a pretensão probatória em relação àquelas inúteis, desnecessárias, protelatórias, mas também àquelas excessivamente desproporcionais (o que se depreende do conceito de necessidade).

Logicamente, essa afirmação leva em conta que o controle do juiz sobre a produção da prova não deve afetar o direito ao contraditório e, muito menos, consistir em violação à imparcialidade, com o prejulgamento da causa, sem que o julgador se permita influenciar pelos argumentos trazidos pelas partes.

A terceira característica que entendemos relevante é a relacionada à integridade da informação e seu potencial para demonstrar o fato alegado pela parte.

A facilidade com que se pode alterar a informação armazenada digitalmente é bem conhecida e, a depender do modo como é realizada, de difícil constatação.

Para resolver essa questão, além da ata notarial já mencionada, mais comumente buscada para certificar fatos que estão registrados em sites ou plataformas ou aplicativos de mensagens, tem sido utilizada a tecnologia blockchain.

Resumidamente, se trata de tecnologia que permite o armazenamento de informações em bancos de dados de forma criptografada e que impossibilita sua modificação posterior[5].

Seu uso vai além do registro produzido pela ata notarial, por meio da criação de um código hash[6] a parte pode determinar que o conteúdo de um determinado banco de dados ou de um disco rígido foi modificado posteriormente àquela data (Uma das funções do blockchain é fornecer um registro de dia e horário –  timestamp), como, por exemplo, se sujeita esse conjunto de dados à prova pericial.

Portanto, ainda que os dados registrados por blockchain tenham sido produzidos por apenas uma das partes e, portanto, se tratar de prova documental unilateral, não se poderá questionar que seu autor inseriu aquelas informações ou fez aquelas declarações, como prevê o art. 412. Tampouco poderá haver discussão sobre sua data ou autoria[7].

E se a força probante dos meios de prova é proporcional a sua confiabilidade, o fato registrado com tecnologia blockchain a tem em elevado grau, em decorrência da impossibilidade ou grande dificuldade da sua adulteração, o que a torna indispensável dentro do quadro de progressiva virtualização da prova documental.

*: Pesquisador da Escola Superior de Advocacia – ESA/OABSP.  Doutor e mestre em direito processual civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Graduado em direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina.


[1] Fato que levou o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, em julgamento que decidiu sobre validade de contrato firmado mediante assinatura digital, a afirmar que: “A verdade é que nem o Código Civil, nem o Código de Processo Civil se mostraram totalmente permeáveis à realidade negocial vigente e, especialmente, à revolução tecnológica que tem sido experienciada no que toca aos modernos meios de celebração de negócios. Eles não mais se servem do papel, senão são consubstanciados em bits” (RECURSO ESPECIAL No 1.495.920 – DF (2014/0295300-9), de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, julgado de 15 de maio de 2018)

[2] A respeito, vale conferir: “The Impact of Digital Information on American Evidence-Gathering and Trial – The Straw That Breaks the Camel’s Back?”, por Richard L. Marcus, em “Electronic Technology and Civil Procedure: New Paths to Justice from Around the World ”, ed. Springer, 2012, p. 34.

[3]  Pense-se numa transportadora que pode ter digitais todos os seus conhecimentos de transporte, dados sobre a condição de saúde do motorista, localização georreferenciada e velocidade do veículo, dados sobre temperatura da carga etc.

[4] Flávio Luiz Yarshell trata do tema com a usual clareza e propriedade: “com o avanço tecnológico e o advento da electronic discovery, alargou-se o campo para o abuso no referido contexto, com uma nova gama de possibilidades que passam por “enterrar” o acusado em meio a milhares ou milhões de páginas de documentos irrelevantes ou duplicados; e chegam até mesmo à produção de dados tão cheios de problemas técnicos que acabam por ser essencialmente inutilizáveis” (Prova documental volumosa: perplexidades geradas pelo document dump, in https://www.conjur.com.br/2019-out-20/flavio-yarshell-perplexidades-geradas-document-dump, consultado em 19.06.20).

[5] Como esclarece André Vasconcelos Roque: “Em síntese, o blockchain funciona como um banco de dados, onde são armazenadas transações em caráter permanente. Cada bloco de informações possui referência ao bloco anterior (daí o termo “cadeia de blocos”) e, por isso, nenhum bloco anterior pode ser alterado sem que modifiquem os blocos posteriores.

(…)

Voltando ao esquema do blockchain, como dito, para cada bloco é produzido um hash. No entanto – e aqui está a vinculação – no bloco seguinte é armazenada a “Informação B” e também o hash do bloco anterior (“Hash A”). A partir desse conjunto é extraído o hash desse segundo bloco (“Hash B”) e assim por diante.

Mínimas alterações na informação original, como visto na tabela acima, modificam completamente o hash. Assim, se alguém tentar adulterar a informação armazenada no bloco A, isso irá modificar o Hash A, que é gravado no bloco B, de maneira que toda a cadeia de informações nos blocos subsequentes se tornará inconsistente” (A tecnologia blockchain como fonte de prova no processo civil, in https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-tecnologia-blockchain-como-fonte-de-prova-no-processo-civil-15102018)

[6] “Hash nada mais é que uma sequência de dados de comprimento fixo (ou seja, de mesmo número de caracteres) obtida por meio de tratamento de determinado conjunto de informações a um algoritmo (a grosso modo, sequência de instruções que determinará a conversão das informações em um hash).” (A tecnologia blockchain…cit.)

[7] Novamente André Vasconcelos Roque: “É verdade que o documento apresentado em juízo a partir de dados armazenados com tecnologia blockchain, na ausência de qualquer previsão legal, equipara-se a um simples documento particular, desprovido de fé pública. Entretanto, dada a confiabilidade e a segurança que normalmente são associadas a esse tipo de tecnologia, revelando serem baixas as probabilidades de adulteração, em princípio, deverá o ônus da prova ser distribuído de forma diversa do que estabelece aprioristicamente o art. 429, II do CPC (ou seja, à parte que produziu o documento). Afinal, o ordinário se presume e o excepcional é que deverá ser objeto de comprovação em juízo”. (A tecnologia blockchain…cit.)


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