*Por João Eberhardt Francisco

Vai longe o tempo em que se debatia se as petições processuais podiam ser datilografadas, ao invés de escritas à mão, pois aquele que as assinasse poderia não ser o mesmo advogado que as redigiu[1], e em que sentenças datilografadas eram anuladas porque o uso de máquina de escrever não preservaria o sigilo das decisões penais antes da publicação[2].

Não é de hoje, vê-se bem, que a evolução tecnológica de meios empregados na prática de atos processuais anda ao lado da discussão das implicações éticas decorrentes da sua adoção.

E não se faz essa afirmação com intuito de diminuir a relevante preocupação com as consequências dessas mudanças, nem se recorre a exemplos históricos para demonstrar que “resistir é inútil”[3].

A prática da advocacia é, e deve ser, objeto de constante exame quanto aos seus aspectos éticos, e se a datilografia ou escrita já ocuparam o centro dessa atenção, como também já foram as ferramentas de edição de texto (especialmente a função “copiar e colar”) e mais recentemente o uso de videoconferência na tomada de depoimentos e testemunhos, hoje a automação de documentos e uso de jurimetria ocupam esse espaço.

A adoção de qualquer meio de tecnologia no processo modifica não só o suporte em que é materializado o ato processual, mas também o seu modo-de-ser[4]. Entretanto, o potencial de “destruição criadora”[5] ou disrupção dessas tecnologias parece superar em muito seus “antecessores” tecnológicos.

Afinal, não obstante o inegável impacto que o uso de computadores e de redes de informação produzem, permanece verdadeira a constatação de que a área jurídica tem seus rumos guiados pela experiência profissional, vale dizer, seus líderes são aqueles que são reconhecidos pela comunidade jurídica como profissionais experientes e, portanto, capacitados para exercer esse papel[6].

A automação de documentos e a jurimetria tem potencial para romper essa condição. Com softwares que auxiliam a confecção de documentos jurídicos – como minutas de correspondência, contratos e até mesmo petições -, os riscos de falha humana são diminuídos, pois, o processo de “montagem” do documento exige que cada uma das suas etapas seja realizada corretamente, com o preenchimento de formulários preordenados, para que tenha prosseguimento.

Mais além, os programas colhem informações nas bases de dados do cliente ou do próprio escritório, identificam palavras-chaves contidas nos documentos eletrônicos, e sugerem o tipo de solução (p. ex. ação de indenização por dano moral), a argumentação a ser utilizada (previamente inserida como modelo no banco de dados do programa), e apresentam o produto final, sujeito à aprovação do advogado para encaminhamento ao tribunal.

Então, se por hipótese o cliente não fornece todos os dados essenciais relacionados aos casos, por não deter essas informações ou por falha nos seus registros, o software poderá não ser capaz de identificar as principais questões jurídicas atinentes à controvérsia e sugerir soluções.

Logicamente, a qualidade (ou acuidade) do resultado final depende da qualidade das informações previamente inseridas pelos advogados nos modelos ou bases de dados acessados pelo software, ou ainda, buscadas em bancos de dados públicos, como os repositórios de jurisprudência dos tribunais.

Aqui reside outro aspecto “disruptivo” das tecnologias mencionadas. Um advogado tradicional, ao se deparar com perguntas como “quais são as minhas chances em vencer uma demanda judicial”, “quais serão os meus gastos”, “é recomendável buscar um acordo”, formulará respostas com base em seus conhecimentos e sua experiência e, por que não dizer, na sua intuição, que nada mais é do que a forma que nossos cérebros processam e acessam rapidamente o conhecimento acumulado[7].

Um sistema computadorizado, por sua vez, responderá com base na análise de dados, que um ser humano levaria milhares ou milhões de horas para ler, compreender e, o mais difícil, reter essas informações na memória.

Essa capacidade possibilita que se adotem abordagem estatísticas (mas não só) do funcionamento do judiciário, que passa a ser compreendido como gerador de dados[8]. O uso dessas ferramentas permite, inclusive, a predição de resultados, informando a tomada de decisões de clientes e advogados, aumentando o potencial de êxito nas demandas, a formação de fundo contingencial e resguardando a responsabilidade profissional do advogado.

Portanto, cada vez mais tarefas, de diversos graus de envolvimento intelectual, desenvolvidas por advogados, estagiários, assistentes ou auxiliares de escritórios de advocacia passam a ser realizadas total ou parcialmente de forma automatizada.

Nesse ponto, justamente, reside a questão ética que acompanha essas inovações tecnológicas. Não obstante a eficiência desses métodos ou o incremento de qualidade que possam resultar, todo produto da atividade advocatícia deve ser sempre revisado por advogado capacitado para essa tarefa[9].

Se uma parcela significativa da atuação do advogado puder ser automatizada, tanto melhor, restará mais tempo para que se ocupe das tarefas que fazem seu papel ser efetivamente indispensável à administração da justiça – sempre lembrando que o advogado e a sociedade de advogados são responsáveis pelo conteúdo que é produzido por eles, independente de ter sido utilizado software para tanto. E não, não se pode culpar o “robô” nesses casos.

*: Pesquisador da Escola Superior de Advocacia – ESA/OABSP.  Doutor e mestre em direito processual civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Graduado em direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina.


[1] Cf. Freddie Didier Jr. em http://www.frediedidier.com.br/editorial/editorial-151/

[2] Cf. Fabio Ulhoa Coelho em https://www.conjur.com.br/2007-set-08/judiciario_ainda_reluta_avancos_tecnologicos

[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Borg_(Star_Trek)#:~:text=Os%20Borg%20s%C3%A3o%20uma%20pseudo,ficcional%20da%20franquia%20Star%20Trek.&text=Os%20Borg%20se%20tornaram%20um,qual%20%22resistir%20%C3%A9%20in%C3%BAtil%22.

[4] http://ditec.esaoabsp.com/2020/06/05/estamos-sendo-justos-com-o-processo-eletronico/

[5] Conceito desenvolvido por Joseph Schumpeter em sua obra clássica “Capitalismo, Socialismo e Democracia”, cujo trecho que a seguir se transcreve é especialmente esclarecedor: “Mas, na realidade capitalista e não na descrição contida nos manuais, o que conta não é esse tipo de concorrência, mas a concorrência de novas mercadorias, novas técnicas, novas fontes de suprimento, novo tipo de organização (a unidade de controle na maior escala possível, por exemplo) — a concorrência que determina uma superioridade decisiva no custo ou na qualidade e que fere não a margem de lucros e a produção de firmas existentes, mas seus alicerces e a própria existência.” (Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1961, p. 111).

[6] “The legal industry is one of the few remaining outposts of the corporate world whose operations are dictated mainly by human experience”(http://www.slate.com/articles/technology/robot_invasion/2011/09/will_robots_steal_your_job_5.html)

[7] Como relata Daniel Khneman:  “A psicologia da intuição precisa não envolve mágica alguma. Talvez a melhor declaração sucinta sobre ela seja a do grande Herbert Simon, que estudou mestres enxadristas e mostrou que após milhares de horas praticando eles passam a ver as peças no tabuleiro de modo diferente do resto de nós. Podemos sentir a falta de paciência de Simon com a mitificação da intuição especializada quando escreve: “A situação forneceu um indício; esse indício deu ao especialista acesso à informação armazenada em sua memória, e a informação fornece a resposta. A intuição não é nada mais, nada menos que reconhecimento.” (…) Intuições válidas se desenvolvem quando os especialistas aprenderam a reconhecer elementos familiares em uma nova situação e a agir de um modo que seja apropriado a isso” (Rápido e devagar: duas formas de pensar, ed. Objetiva, 2011, p. 17)

[8] https://abj.org.br/mas-afinal-o-que-e-jurimetria/

[9] Do Estatuto da Advocacia:

Art. 17.  Além da sociedade, o sócio e o titular da sociedade individual de advocacia respondem subsidiária e ilimitadamente pelos danos causados aos clientes por ação ou omissão no exercício da advocacia, sem prejuízo da responsabilidade disciplinar em que possam incorrer.

Art. 34. Constitui infração disciplinar:

V – assinar qualquer escrito destinado a processo judicial ou para fim extrajudicial que não tenha feito, ou em que não tenha colaborado;

E do Código de Ética e Disciplina da OAB:

Art. 2º, parágrafo único: são deveres do advogado

VII – desaconselhar lides temerárias, a partir de um juízo preliminar de viabilidade jurídica;

Art. 9º O advogado deve informar o cliente, de modo claro e inequívoco, quanto a eventuais riscos da sua pretensão, e das consequências que poderão advir da demanda. Deve, igualmente, denunciar, desde logo, a quem lhe solicite parecer ou patrocínio, qualquer circunstância que possa influir na resolução de submeter-lhe a consulta ou confiar-lhe a causa.



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