*Por João Eberhardt Francisco

Dizem que se um advogado do século 19 entrasse em uma sala de audiências nos dias de hoje, durante um julgamento, conseguiria compreender perfeitamente o que está acontecendo, diversamente do que aconteceria, por exemplo, com um funcionário de uma manufatura daquele século que fosse transportado no tempo até o piso de fábrica de uma montadora de veículos, por exemplo.

Pode-se pensar que a introdução de novas tecnologias não seria capaz de produzir mudanças significativas no processo civil, mas, apenas um novo suporte para materialização do ato processual. Essa conclusão não resiste uma análise muito simples de uma situação que nos é cotidiana: nossas principais formas de comunicação não são mais as cartas, nem sequer os telefonemas, mas os e-mails e comunicações instantâneas, como o whatsapp.

A facilidade para a comunicação que exige apenas acesso à internet em um computador ou celular trouxe consigo o aumento da quantidade e da rapidez das informações trocadas e, com isso, além da informalidade, uma verdadeira revolução cultural. Seria ingenuidade pensar que somente o processo judicial não seria atingido por essas profundas modificações[1].

É verdade que a adoção dos meios de tecnologia no direito processual tem sido lenta, o que, em certa medida, é perfeitamente compreensível, afinal, as garantias processuais estão representadas na adoção de determinadas formas, por exemplo, acredita-se que com a citação pessoal é assegurado que a pessoa natural ou jurídica terá plena ciência de que é movida uma demanda contra si e, portanto, terá plenas condições de apresentar defesa, se assim desejar.

Assim, enquanto cumpra sua função, a forma é desejável e até mesmo inerente ao devido processo legal. A estabilidade, segurança e previsibilidade do processo civil são entendidos como consequência da adoção de formas conhecidas pelos advogados que, por sua vez, são aqueles que orientam seus clientes e exercem essa atividade de tradução das versões das partes em linguajar e formas jurídicas.

Isso não significa que os atos processuais tenham sido sempre exercidos da mesma forma na história do processo civil, aliás, desde há muito se lida com a dicotomia garantia-eficiência para adotar modos mais flexíveis ou rigorosos de se exercer pretensão e defesa mediante contraditório[2].

No contexto atual, a justa preocupação com o elevado volume de processos em curso em nossos tribunais nos leva a pensar, dentre outras soluções para se atender ao princípio da eficiência administrativa, naquelas que de alguma forma envolvem meios de tecnologia.

E com isso, tem-se a volta do pêndulo, pois, se muitas vezes é inegável a eficiência obtida com sua adoção, não parece tão certo ao leigos e aos profissionais[3] que as garantias processuais serão igualmente atendidas.

Um bom exemplo do que aqui se trata é a possibilidade de intimação das partes por meio de serviços de comunicação eletrônica, como e-mails whatsapp, que voltou aos noticiários jurídicos[4] com a edição da resolução 661 do STF[5], publicada em 09 de fevereiro de 2020, que “dispõe sobre o envio de comunicações processuais e autos de processos eletrônicos por mensagem eletrônica registrada”.

As notícias mais antigas que pudemos localizar a respeito da utilização do aplicativo Whatsapp para intimação de atos judiciais são de novembro de 2014[6], pouco mais de cinco anos atrás, uma eternidade em tempos de internet.

Em um dos casos, o magistrado determinava a intimação pelo meio mais rápido, fosse ele telefone ou Whatsapp, para cumprimento de sentença proferida no âmbito do procedimento dos juizados especiais e, ouvido pela reportagem, justificava assim sua decisão: “Não podemos nos prender exclusivamente ao pé da letra da lei, temos que ser criativos, responsáveis e tentar prestar um serviço de qualidade”[7].

No outro processo noticiado, a seção estadual da OAB manifestou seu repúdio, afirmando-se que essa forma de intimação: “além de não encontrar o devido respaldo legal, não goza de segurança jurídica necessária para o ato, acarretando, assim, a nulidade dos atos processuais”.[8]

Aqueles que defendiam sua adoção, sustentavam que a possibilidade recém introduzida pelo aplicativo de se obter confirmação de recebimento da mensagem (dois tiques azuis), bastaria para assegurar o recebimento da intimação por seu receptor. Já aqueles contrários a sua adoção afirmavam que a própria lei de informatização do processo judicial havia estabelecido requisitos mais rigorosos para tanto.[9]

A resolução 661 do STF tenta chegar ao meio-termo, conferindo segurança e celeridade às comunicações processuais eletrônicas, a questão a ver é se esses objetivos serão atingidos a contento.

Veja-se, por exemplo, que logo no seu artigo 2o encontra-se a definição de “mensagem eletrônica registrada”, que seria aquela que produz prova verificável e inquestionável do envio e entrega da mensagem ao seu destinatário.

Não nos parece que seja possível atender a esses requisitos sem a participação da própria empresa que oferece o serviço de comunicação, o whatsapp por exemplo, que tem histórico em proteger a confidencialidade das suas transmissões, resistindo em apresentar dados sem que exista determinação judicial dirigida à empresa matriz, conforme acordo de cooperação internacional[10].

No entanto, embora não prime por sua clareza, a resolução parece limitar a possibilidade de recebimento de intimações por e-mail, pois se refere a essa modalidade de comunicação no inciso IV do artigo 2o, ao definir o que seja endereço eletrônico institucional, conceito que é referido em diversos dos artigos subsequentes.

Além disso, merece destaque que o cadastro do endereço de e-mail é voluntário[11] e o não recebimento da intimação pode ser afirmado como causa de interrupção do prazo, medidas que se por um lado são elogiáveis da perspectiva da segurança, certamente afetam a celeridade e eficiência das comunicações processuais.

Por fim, observe-se que o art. 5o, parágrafo dispõe que: “O recibo eletrônico de sua entrega será juntado aos autos para fins de contagem de prazos processuais”, permitindo entender que os prazos se contariam da juntada do recibo eletrônico aos autos, o que eliminaria uma das principais vantagens dessa forma de comunicação, que seria a supressão da demora dessa juntada.[12]

Em suma, a mera adoção de novas tecnologias não é capaz de por si só modificar o equilíbrio entre garantia e eficiência, ou mesmo oferecer soluções prontas para os problemas que se apresentam. Nas próximas colunas, continuaremos a analisar a escolha de formas de tecnologia para enfrentar a crise do judiciário e os novos dilemas que disso decorrem.


*: Pesquisador da Escola Superior de Advocacia – ESA/OABSP.  Doutor e mestre em direito processual civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Graduado em direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina.








[1] Sobre o tema, ver nosso “A oralidade e a relação entre o juiz, os advogados e as partes no contexto da informatização do processo” In Garantismo Processual: garantias constitucionais aplicadas ao processo. Ed. Gazeta Jurídica, Brasília, 2016.

[2] O ancien code francês de 1806 já trazia em sua exposição de motivos que, após uma severa pesquisa dos procedimentos frustrantes e ruinosos constantes do código de 1667, aboliam-se as formalidades inúteis e suprimiam-se os procedimentos supérfluos, para um processo mais simples, mais curto e menos custoso (cf. CADIET, Loic. “Case Management Judiciaire et Deformalisation de la Procédure”. In Revue Française d’Administration Publique, n. 125, p. 137, 2008).

[3] https://link.estadao.com.br/blogs/deu-nos-autos/voce-tem-uma-mensagem-judicial-nao-lida/

[4] A intimação por whatsapp já era admitida pelo CNJ desde ao menos 2017, sendo, inclusive destaque do Prêmio Innovare de 2015 (https://www.cnj.jus.br/whatsapp-pode-ser-usado-para-intimacoes-judiciais/)

[5] http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Resolucao661.pdf

[6] http://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/2014/11/juiz-de-rondonia-manda-intimar-parte-de-processo-por-aplicativo-de-celular.html

[7] http://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/2014/11/juiz-de-rondonia-manda-intimar-parte-de-processo-por-aplicativo-de-celular.html

[8] https://jus.com.br/artigos/34329/a-intimacao-via-whatsapp-mais-uma-jabuticabada

[9] Lei nº 11.419 de 19 de Dezembro de 2006 – Dispõe sobre a informatização do processo judicial; altera a Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil ; e dá outras providências.
Art. 1o O uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais será admitido nos termos desta Lei.
§ 2o Para o disposto nesta Lei, considera-se:
III – assinatura eletrônica as seguintes formas de identificação inequívoca do signatário:
a) assinatura digital baseada em certificado digital emitido por Autoridade Certificadora credenciada, na forma de lei específica;
b) mediante cadastro de usuário no Poder Judiciário, conforme disciplinado pelos órgãos respectivos.”

[10] A questão é objeto de debate no STJ, na ADPF 403 e na ADI 5527 , esta movida contra os dispositivos da Lei 12.965/2014 que dão suporte jurídico à concessão de ordens judiciais para que aplicações de internet forneçam o conteúdo de comunicações privadas e preveem sanções em caso de descumprimento. (http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=341437)

[11] http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=437311

[12] Não obstante o próprio STF afirme em seus informativos que a contagem dos prazos seria imediata (“Com a medida, o início da contagem de prazos processuais passa a ser praticamente imediata, pois começa no momento em que o STF recebe a confirmação de que a mensagem foi entregue. Para as comunicações postadas por carta registrada, o prazo só começa a contar quando o Tribunal toma ciência do Aviso de Recebimento (AR), o que pode levar até 30 dias. Além da celeridade, o envio por meio eletrônico dispensa a postagem via Correios dos documentos físicos” – http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=437311), essa disposição não foi encontrada na Resolução 661.




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